A Voz De Um Sonho Prendido

No último domingo, enquanto eu lia, sonolenta e triste, vagas visões invadiram meus devaneios. Nada dignos de serem memorados. Talvez ajustes de contas não feitos com meu íntimo. 

Já quase adormecida oiço a voz de alguém, desconhecido e áspero. 

- Senhora! – Disse a voz.

- Sim!- respondi, como que para fingir não estar em embalo profundo.

A voz se cala. Estava frio. E o fogo morria pouco a pouco na lareira.

- Senhora! – Diz outra vez a voz, num tom infundido. Causando um ligeiro arrepio.

- Estou aqui! – Replico - Quem é?

- Uma visita pedindo asilo em seus pensamentos. Sou seus desejos contidos. Os sonhos que jogou fora por medo de conquistar.

Pasmada e cheia de medo pergunto:
-Porque é que apareceu, hoje, nestes trajes imundos, nesta aparência moribunda, vadia e repugnante?

-Perdão senhora. Não quis assustá-la, nem apresentar-me nesta visão ultrajante e medonha. Ou talvez quisesse. Mas, na verdade, assim me guardou. Asqueroso e sujo. Na masmorra de seus medos. E lá, luto contra os ratos e a imundice de nunca poder ser realizado. - Estas últimas palavras, pronunciou num tom seco e sério que faz eco no fogo que dá seu último suspiro.

Não sei o que dizer. E olho fixamente para o livro que tenho em mãos, ainda por ler.

-Não precisa dizer nada, senhora. Eu sei o que pensa. Conheço os rins da sua intimidade e a concepção que não chegou a conhecer. Mas, hoje, estou aqui para falar de mim. De si. De nós. Estou cansado de estar aqui fedido e mofando. Quero liberdade, senhora! Quero voar nas asas que prometeu quando me idealizou. Pare de olhar para a capa deste livro demente! Sabe que pode ir mais longe. Por que é que me prende?

- Estou confusa e perdida. – Justifico. - Não lhe dei permissão para ser visitante em meus pensamentos! - Digo com entono e represália.

- Já não me importa senhora! – Contestou secamente.- Há muito que não sou convidado à mesa de sua consciência, nem planos para suas demências. Cansei desta morte eterna de não poder ser realidade. Seriamos tão felizes juntos! Levanta-se desta cadeira indolente e reacenda o fogo que morre dando vida a este frio enfermo!

Levanto-me então para por mais lenha na lareira. A casa ilumina-se imediatamente. Mas meu intimo ainda está escuro e sei que tenho de resolver, hoje, as questões com meu eu.

-Sou fraca. Titubeante. Insignificante. Miserável. Pobre e nua. Não posso ajudá-lo. Nem tão pouco tirá-lo da masmorra. – Pronuncio, por fim, sem grandes esforços em pensamento.

-Tudo que diz é vaidade. Não seja leviana, senhora. Seu íntimo é por demais esbelto para se sujeitar a estes disparates. Sabe que pode ir mais longe. O fogo da lareira clareia o chão da sala mas, não seu interior. Sabe por quê, senhora? Porque seus sonhos ainda estão apagados. Seja corajosa e forte, ateie fogo a este medo, vão, para que queime até a alma. Liberte a bravura que me fará livre e real.

Já não tenho argumentos. Nunca tive. Sempre prendi-me no medo de ter coragem. Agora é hora. Horas belas. O meu relógio velho de parede assinala, em badaladas, zero horas. A hora do fim e do começo. E nesse instante liberto meus sonhos e desejos há muito contidos. E deixo-os voar pelo oco da sala. E espero que pela manhã estejam prontos para correr o mundo em realidade.



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