A um desconhecido!

 

Foto by: Alex Todosko

Disse-me um dia alguém que é mais fácil falar a verdade a desconhecidos. Pensava que era algo frívolo mas, agora começo a ver certa verdade nessas palavras. Não cheguei ao ponto de acreditar vividamente nelas ao atribuí-las qualquer mérito. Quem sou eu para o fazer?

Mas, o nosso relativo desconhecimento faz-me sentir um particular à-vontade entre os teus olhos e os meus segredos, que contar-te-ia qualquer verdade. E olha que eu sempre fui de meios sorrisos e meias palavras.

Nunca senti tanta necessidade de desvestir-me como sinto ao pé de ti. Sempre fui suficientemente autoconfiante e nunca fui dessas que acreditam em almas gêmeas, apesar de agradar-me o seu conceito.

Sempre acreditei que o verdadeiro romance não tem nada que ver com fantasias. Romances são momentos que naturalmente acontecem e nos fazem estar tão confortáveis ao ponto de não ter de criar qualquer expectativa. Sem planos. Sem cobranças. Sem ressentimentos. Creio que de isso o amor se trata.

Assim como tu, nunca considerei-me romântica, a não ser nos textos imaginários que escrevo. Sempre acreditei que equiparar o real e o imaginário é o que desconecta as pessoas e transforma promessas em desilusões. Sempre fui bastante racional para buscar algo assim.

Mas agora, entre tu e o que quero, há um abismo. Um manancial de dúvidas que transforma tudo o que quero em fantasia.

Nunca desejei tão incessantemente a presença de alguém. Ainda que te deseje com toda força e com toda alma, não seria capaz de pedir que viesses.

Sempre acreditei que a liberdade é o que nos faz autênticos e sempre gostei que as pessoas usassem a sua liberdade para escolher-me a mim, para vir até mim. Acredito que pedir por isso tiraria qualquer encanto a esta escolha individual.  

Não é que eu esteja certa ou que as minhas palavras sejam um decreto divinal. No entanto, não aguentaria o peso da culpa por qualquer falha em tua escolha. Pedir-te-ia que viesses, mas a minha modéstia não dá lugar a esse egoísmo necessário. Serei eu digna?

Já que é lendário dizer verdades a desconhecidos, deixa-me contar-te as minhas verdades.

Estou mais apaixonada do que posso admitir e confesso que o soube desde que abracei-te, pela primeira e única vez. Mas, ainda somos desconhecidos e não sei se estou preparada para mudar isso. E se quando nos tornarmos conhecidos eu não puder contar-te todas as minhas verdades?

É que quando se passa muito tempo no deserto qualquer visão singular pode ser miragem ou oásis. Quero com toda força que sejas este último.

Sempre achei-me completa e nunca supus que poderia ser apenas a metade de algo melhor. Estaria enganada?

Sempre que pensava em viagens e longas jornadas imaginava-me sozinha e bem acompanha, mas agora a ideia de um par parece-me mais atraente.

Já que estamos a confessar verdades, deixa-me dizer-te que sinto uma vontade, quase maternal de cuidar de ti.

Mas, estamos de acordo que seria loucura apaixonar-nos!

Sei que para ti também sou desconhecida. É minha especialidade o ser. Não sei se um dia poderás ver-me completamente. Posso ser várias versões de mim, sem deixar de ser eu mesma. Aquilo que não puderes compreender só resta aceitar. Muito do que sou vai depender de quem tu fores.

Se também tiveres medos e demónios, vou compreendê-los. Tentarei atenuá-los mas, eu não faço promessas que não possa cumprir. Se precisares de cura posso ser um abraço apertado e um abrigo terno, mas nunca prisão.

Ainda que tudo isso não passe de uma grande loucura, quero que saibas que nunca me tinha passado algo parecido. Nunca tinha conhecido alguém como tu. Na verdade, cada pessoa é uma pessoa. Mas, eu gosto do teu singular.

Se tudo isso acabar, e eu não quero que acabe, continuariam aqui as marcas de todo esse devaneio.

Não me preocupo se nos voltaremos ver. Tenho a total certeza de que isso vai acontecer. Não que isto seja um decreto do destino ou algo parecido. É tão óbvio e necessário que até o universo tem a certeza disso.

Pelo menos nisto quero acreditar, já que me disseste que "não se pode atormentar um milagre com compreensão". O que aconteceu entre nós é certamente um milagre, um fenômeno único e impossível de ser replicado. 

Também acredito que, muitas vezes, passos, planos e expectativas podem ser destrutivos para fenómenos como este. 

Mas, e se a ausência prolongada e a falta de contacto ao vivo começasse a dissolver a intensidade do que temos? E se não? Tudo o que temos nunca foi baseado em contacto físico. O céu e o mar que nos separou, durante todos esses anos, nunca afastou as nossas almas. De alguma forma sempre estivemos conectados. Mesmo na distância, mesmo no silêncio, mesmo na partida. Isto dá- me certo conforto.

Igual que tu, não sei como agir com respeito ao nosso futuro reencontro. Deixaremos as coisas seguirem seu curso ou tomaremos medidas concretas? Ambos estamos perdidos sobre o que virá.

Só espero que quando isso aconteça, seja tão intenso quanto tudo que vi em ti. Não teremos de forçar este encontro, nem fazer uma agenda. Vai acontecer exatamente como da primeira vez. Sem planos. Sem expectativas. Estas não são palavras proféticas. É apenas a única verdade que até agora conheço sobre mim e ti. 

E este texto devia ser a resposta mas, deixou-nos ainda mais perguntas ao descoberto e esta incerteza, que devia ser triste, passa a ser cada vez mais emocionante.

 

 

 

 

 

Comentários

  1. Brilhante! Abo é rei di bon na kel ku ta fazi!

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  2. Nice...ainda vou descobrir este unknown😉

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  3. Nice...ainda vou descobrir este unknown😉

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  4. Palavras Expléndidos e ta desperta curiosidade....Há quem se identifica 😅

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  5. Texto lindo, my Dear, que dá prazer em ler, com palavras escolhidas a dedo, bem esculpidas na prosa poética, temperadas ao sabor da uma fértil imaginação literária, faz o leitor viajar longe no pensamento ambíguo da constante troca entre o real/imaginário, sem se deixar perder pelas beiras, e o traz de volta no exato momento em que se começa a querer mais, deixando por saciar a sede de saber qual o desfecho, o que virá a seguir? - aguardo os próximos episódios.

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  6. Óptimo texto. Vou ler mais...
    Parabens!!

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  7. Uau, parábens divino, esse texto mostra a dualidade da vida, tão intenso e ao mesmo tempo tão superficial. Mtos sucessos.

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  8. Simplesmente fantástico. Parabens.

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  9. Permanecerei no desconhecido, tal qual quem amas.

    Eu e ele estaremos apenas a um abraço de distância de ti. Não mais. Entre nós não existe nem céu, nem mar, apenas as calcetas e algumas estradas de asfalto. Quem sabe poderia cruzar seus olhos se apenas mudasse de calçada, ali, na rua. Mas não, também serei um desconhecido, para assemelhar a quem amas.

    Não, infelizmente nunca disse que “não se pode atormentar um milagre com compreensão”. Senti ciúmes por ele proferir algo tão bonito. Quem sabe é por isso que o amas.

    Hélas! Permanecei ainda no desconhecido, descerei às linhas do destino e me sentarei, serei um eterno espectador. Esse amor pode ser platónico, mas a dor real. Não serei que amas!

    De desconhecida para desconhecida, deixa eu de confessar um segredo público, "o futuro pertence ainda mais aos corações do que aos espíritos. Amar é a única coisa que pode ocupar a eternidade. Ao infinito é necessário o inesgotável".

    Ame sem medo!

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